quinta-feira, 7 de maio de 2009

Marcelo menino Paiva

Mais uma cronica imperdível de Marcelo Rubens Paiva


O homem da casa


O pai viajava muito. Envolvido em política, tinha reuniões em outros estados. Chegou a ficar ausente meses, exilado. E, mesmo quando estava na cidade, quase não parava em casa.Seu filho nasceu para ser o único homem de uma casa com muitas mulheres. Desde pequeno, fascinava o diverso mundo feminino, rico em detalhes. Sua rotina era invadida por perfumes, nuances, delicadezas e mimos.

A família acordava com o mesmo toque do despertador. Estudavam de manhã. Ele se vestia num minuto. E, como se estivesse na coxia de uma ópera, sentava-se no canto do corredor, para assistir ao corre-corre das quatro irmãs, matriculadas num colégio religioso.Enquanto o que bastava para ele era um short, uma camiseta com o logo da escola, um par de tênis e uma bola, elas tinham de lidar com um vestido de brim pesado, com torçal, laço e faixa. Uma ajudava a outra a guarnecer e amarrar a cintura.

Usavam meias, roupas de baixo, sem contar a maquiagem, o encaixe de grampos, brincos, pulseiras e anéis, além de adornos com nomes estranhos, como piranha e tiara.Havia trombadas no corredor. Brigas. Mãos disputavam peças do figurino. Empurra-empurra. Paninhos com água morna e limão limpavam manchas. As quatro transformavam aquela casa numa trincheira sob bombardeio. Ele não perdia um detalhe deste mundo complexo e perturbador.

Às tardes, elas passavam horas no telefone, com pinças, esmaltes e escovas de cabelo, diante de espelhos. Cada uma examinava com cuidado cada centímetro do próprio corpo.Enquanto ele nem cuidara do joelho ralado na escola, elas pintavam as unhas dos pés e das mãos, raspavam as pernas com a gilete do pai ausente, usavam cremes, pós e batom. Mulheres olham para o mundo através dos espelhos, descobriu.Secavam o cabelo com um barulhento instrumento- de que ele foi proibido de chegar perto, já que o usou como se fosse um revólver, numa brincadeira de rua.
Enquanto ele apenas chacoalhava a cabeça ao sair do banho, como um cão vira-lata saindo do mar, elas enrolavam com destreza uma toalha na cabeça, antes de usarem o secador.

Lembravam as figuras egípcias que ele tinha no livro de História. Uma vez, ele tentou enlaçar a cabeça com uma toalha. Sem sucesso. Só as mulheres conseguem, concluiu.Dividia o banheiro com as irmãs. A sós, passou esmalte nos dedos. Cheirou cremes. Atacou as formigas da pia com uma pinça em cada mão. E torturou o gato da família: colocou presilhas nas suas orelhas, elásticos no rabo e lixou as suas garras.Na lixeira, intrigavam os pacotinhos embrulhados por papel higiênico. Ele abriu alguns deles e observou maravilhado o sangue escondido, proibido. Ele sabia que elas não estavam doentes, nem raladas, sim, porque crianças fazem questão de mostrar a todos os ferimentos conquistados.Ninguém nunca explicou o significado daquele sangue secreto.

Ele tinha consciência de que era parte do misterioso mundo feminino.

Lembra-se com exatidão de uma cena que nunca teve coragem de contar. É um segredo muito bem trancado, que o intimida.Devia ter uns oito anos. Viu pendurados no banheiro da sua mãe uma calcinha e um sutiã. Seus dedos percorreram o tecido delicado. Examinou a intricada armação de alças, presilhas, elásticos e um fecho. Que sofisticada obra de engenharia é o sutiã, pensou. Fez dele um estilingue. Riu. Olhou-se no espelho.Depois de se certificar de que a porta estava trancada, experimentou por cima da roupa.

Vestiu o sutiã. Percebeu o quanto é inoperante o seu fecho. Sentiu as alças apertarem os ombros, o tecido segurar algo que faltava, a armação dificultar os movimentos dos braços. Depois, vestiu a calcinha. Reparou como o tecido era mais delicado do que o das suas cuecas ásperas, que não tinham rendados.Olhou-se de novo no espelho e riu. Parecia um palhaço. Fez uma careta.Qual o significado desse gesto? Vestiu-se para experimentar o que a pessoa que ele mais amava sentia. Viu-se no espelho, para admirar as roupas que tinham a honra de protegê-la.

O pai ficou com receio de o filho ser influenciado e virar um “frouxo”, como se dizia. Tirou-o da escola alternativa do bairro, em que estudavam os filhos dos amigos, e o colocou numa escola pública na Praça da República, centro da cidade; um choque.O queridinho das mulheres da casa de repente era um anônimo uniformizado, cercado por duas mil crianças que usavam o mesmo terno azul, desconfortável e antiquado. Chorou no primeiro dia. Desesperou-se no segundo.

Encontrou uma saída no terceiro: um refúgio que só aumentou a sua admiração pelas mulheres.
Sua avó paterna, animada, carioca de nascimento, morava em frente, na Avenida São Luis. Ele fugiu da escola. Pediu para um pedestre ajudar a atravessar a Ipiranga, e passou a manhã dançando Roberto Carlos com a velhinha de cabelo azul. Pediu para ela pintar o cabelo dele também de azul.Conheceu os penduricalhos de outra geração, como cintas-ligas e anágua.

Brincou com jóias pesadas. Dançou em sapatos altos. Cobriu-se com um casaco de peles e fingiu ser um animal selvagem, atacando a governanta da casa.

A visita virou rotina. Bebia vinho do porto com ela. Dormia no seu colo, que cheirava talco, até a hora de voltar para casa, depois da “aula”.O pai morreu, quando ele tinha onze anos. Antes, portanto, de saber que, até hoje, quando o filho vê uma mulher diante do espelho, nua, com pinças, cremes, examinando as imperfeições da pele, o dia está ganho. O mundo pára de girar, para ele observar o intricado e belo universo feminino.

Sou eu este garoto.

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