sábado, 18 de abril de 2009

O rosto do estuprador - Marcelo Coelho








Na foto, as sobrancelhas hirsutas, convergindo para o nariz, são a tradução caricata do Mal
COMO QUALQUER criminoso, Josef Fritzl fez o possível para esconder seu rosto dos repórteres.A caminho de ser condenado à prisão perpétua por estupro, por incesto, por homicídio e por ter mantido a própria filha em cativeiro durante 24 anos, o monstro se escondia atrás de uma pasta de plástico azul; pela foto, só era possível ver sua mão, mão de velho, cheia de manchas.Mesmo assim seu rosto acabou sendo fotografado. Vejo-o numa foto de perfil, olhos azuis, bigode antigo, expressão indecifrável: certa raiva, talvez, e certo desafio, no olhar.É instrutivo digitar no campo de busca do Google Images o nome do criminoso. Aparece, em primeiro lugar, a foto tirada na delegacia. O vértice das sobrancelhas hirsutas, convergindo para o nariz, é sem dúvida a tradução caricata do Mal. Logo em seguida, contudo, vemos registros de Fritzl nas suas férias, sorrindo, descontraído.O que se esconde atrás de um rosto? Por que ninguém, na cidadezinha onde ele morava, desconfiou de seu segredo?Em outro contexto, aqueles mesmos olhos azuis, aquelas sobrancelhas, aquele ar de desafio, poderiam corresponder também aos de um grande pianista, a um prêmio Nobel da medicina...Escrevo isto e logo penso que não. A Maldade está estampada no rosto do criminoso. Mas sei que estou sugestionado pelos fatos.Nada é mais variável do que a opinião humana. E, se isto acontece, é porque todo homem é capaz de todas as opiniões.Uma senhora de formação católica, não especialmente cândida com relação à perversidade humana, surpreendeu-me uma vez dizendo o seguinte: "Osama bin Laden é um assassino, claro. Mas é estranho. O olhar dele é bom". Um certo calor satisfeito e seguro, sem dúvida, pode ser visto nos olhos de qualquer terrorista. Mas ver bondade em Bin Laden? Será possível?Tudo é possível, quando vemos num criminoso alguma coisa de nós mesmos. Aquela senhora que via bondade em Bin Laden reconhecia indiretamente, talvez, seu desejo de explodir o World Trade Center. Coisa que pode ter passado pela cabeça, aliás, das próprias vítimas daquele atentado.Eis que aparece outro monstro, Josef Fritzl. Seus crimes são inimagináveis. Posso até entender que um psicopata tenha prazer em estuprar criancinhas: cede a um impulso, aquieta-se, e depois o impulso retorna, serial. Mas persistir, dia após dia, no mesmo crime, na mesma aberração, durante 24 anos?Acho que só podemos entender um caso desses, na verdade, se mergulharmos mais dentro de nós mesmos.Todo pai de família, hoje em dia, preocupa-se com seus filhos quando saem "para a rua". Na rua, tudo pode acontecer. A menina adolescente pode ser assaltada, sequestrada, estuprada... O risco existe.Mas a fantasia paterna é outra coisa: transfere para o assaltante, para o estuprador, um papel que existe na vida real. O primeiro namorado, o outro homem que está além do Pai, irá fatalmente tirar a virgindade de uma menina inocente e protegida. Até que ponto o medo do pai diante do estuprador não traduz, apenas, o medo do pai diante do primeiro namorado?Acho que Josef Fritzl encenou esse medo até suas últimas consequências. Quis preservar a filha de todo contato com o mundo exterior. Melhor que seja eu a estuprá-la do que um rapaz qualquer.No incesto, a rigor, concentra-se toda a atual insistência em torno dos "valores familiares". Insistir na importância da "família" pode ser correto, mas pode também ser a máscara de uma resistência à exogamia, à miscigenação, ao sexo em geral.Do mesmo modo, o horror à pedofilia -verdadeira obsessão nos dias que correm- pode bem ser exemplo de hipocrisia e demonização. Uma coisa, claro, é violentar bebês de dois anos. Outra coisa, acho, é o envolvimento sexual entre um padre e um menor de rua bonito, com 16 anos de idade. Neste último caso, quem manipula quem? Quem é a vítima, quem o criminoso?O pedófilo está em todos nós. A partir do momento em que se considera a atração sexual independente de uma relação constante, adulta, sentimental, romântica e recíproca, pouco importa a idade da pessoa desejada. Vale a beleza corporal, não o que alguém nos traz como pessoa. É isso -será monstruoso isso?- que não queremos ver, quando Josef Fritzl esconde seu rosto.

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