Mundo matuto
Lá estava o presidente, com sobrancelhas unidas a carvão e ar meio desenxabido
MILHO VERDE , quentão, fogueira: não tenho nada contra. Quem gosta de festas juninas que vá.
Mas confesso que as fotos me incomodam depois.Recentemente, apareceu uma no jornal que foi de doer. Era o senador oposicionista Heráclito Fortes, vestido a caráter para a noite de são João.
Uma curtíssima gravata amarela, na tonalidade quindim, saltava da sua respeitável papada.Menos de um palmo adiante, a gravata desistia do trajeto: a enorme e rotunda extensão xadrez da camisa de flanela desencorajaria, com efeito, até mesmo os mais auriverdes pendões da esperança.
Heráclito Fortes é um dos mais bem-humorados membros do Senado Federal e, se por lá o deboche costuma se fazer a sério, menos mal que recorra aos chapéus de palha e botinas de elástico na ocasião apropriada. Mesmo assim, tenha dó.Não foi culpa dele se foi fotografado; muito menos se a foto saiu na Folha. O mesmo talvez se deva dizer de Lula e Marisa, que também apareceram a caráter no já costumeiro arraial da Granja do Torto.
Lá estava o presidente, com as sobrancelhas unidas a carvão, calça remendada e ar meio desenxabido, de mãos dadas com uma sardenta Marisa de vermelho.
Não, não fica bem. Se quiserem fazer as festas, que façam -mas gostaria que em segredo. Tantas coisas são feitas às escondidas em Brasília que não seria difícil vetar o acesso da opinião pública ao congraçamento desses marmanjões.
Festas de são João, a meu ver, deviam ser mais para crianças. Ficam bonitinhas vestidas a caráter.Minha mãe, por motivos inexplicáveis, não tinha simpatia pela coisa. Horrorizava-a que crianças pintassem falsos bigodes e barbichas com lápis de sobrancelha. Do mesmo modo, se opunha a que meninos usassem paletó: "Ficam parecendo anões". Hoje, talvez dissesse: "Ficam parecendo senadores".
Na verdade, faz todo o sentido que crianças usem bigodes pintados nas festas caipiras. O que está em jogo é uma espécie de trocadilho histórico. Revivendo o mundo matuto, a sociedade celebra um passado distante, religioso, comunitário e pobre. Esquecemos o desenvolvimento urbano, para regredir no tempo.
Essa visita ao atraso interiorano se compensa, todavia, quando se faz de cada menino um homenzinho embarbichado, pronto para casar-se na igreja. O país arcaico passa a ser ocupado por crianças subitamente crescidas, capazes da utopia juscelinista dos "50 anos em cinco". Ou, talvez, a ideia seja dizer que o velho trabalhador rural, na sua ingenuidade e dependência, tinha algo de criança -e com isso o passado se exorciza.
Transposta para o universo adulto de verdade, a festa junina perde um bocado desse sentido, ou dessa ambiguidade. Quando fiquei mais velho, só fui a uma dessas festas, para nunca mais voltar.
Era no interior do Estado do Rio de Janeiro, no sítio de um político que tinha origens no velho PTB de João Goulart. Era parente de um amigo meu. Um ônibus da prefeitura de Niterói levou a cupinchada até o arraial.
Faz muito tempo, mas já se falava, na época, em "Sul Maravilha". Aquele interior fluminense pareceu-me de um subdesenvolvimento atroz. Tinha chovido. Um dos meus companheiros de viagem queixava-se de dor de garganta."Isso só sara com suco de mulher", disse ele, em termos mais chulos do que os que acabo de escrever. De minha parte, contentei-me com vinho quente e com um angu de milho com miúdos, mergulhando em seguida nos torpores da fisiologia.Na hora de ir embora, o ônibus tinha atolado num mar de lama. Para um ônibus atolar, não é fácil. Para desatolá-lo, é mais difícil ainda. Arranjei uma carona; o ônibus deve ter ficado por lá até hoje; não sei se alguém se lembrou de que aquilo era patrimônio público.
Vendo as fotos desses políticos vestidos de nhonhô, ocorrem-me agora as imagens daquele ônibus atolado, daquele angu, das fracas lâmpadas amarelas na porta das vendinhas que, vez ou outra, piscavam durante o caminho de volta.
É como se o Senado fosse aquele ônibus, carregado de cupinchas e falsos capiaus, afundado na noite interiorana, insistindo em manter vivo um mundo que não existe.
Pelo menos, como eu já disse em outro artigo, eles podiam desistir de pintar o bigode. Estão já bem grandinhos para isso.
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